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  • Foto do escritorColegio Sao Pedro

A Edificação da Personalidade Ética: Minhas crianças? E eu com isso?

Por Mario Sergio Cortella

Existe uma diferença significativa na vida, quando se pensa na relação com os outros, entre compreender e aceitar. Uma pessoa só pode aceitar ou rejeitar algo ou alguém depois de o ter compreendido. No entanto, o fato de eu te compreender e, portanto, por exemplo, também te amar, não significa que eu aceite o que você faz. Aliás, o amor pressupõe, inclusive, a capacidade de se discordar daquele a quem se ama.

A discordância é um sinal de amorosidade, quando feita com respeito. Se eu vivo com alguém que sempre concorda comigo em tudo que eu faço, é sinal de que talvez essa pessoa não se importe tanto comigo. Cuidado com gente que concorda contigo o tempo todo. Claro, você não pode conviver com alguém que só discorda. Mas alguém que só concorda te deixa estacionado.

Quantas vezes os filhos discordam de mim e eu discordo deles? A discordância respeitosa é sinal de amorosidade. Agora, quando eu digo “eu te amo, mas discordo disso que você está fazendo”, isso dá substância ao amor.

Qual a boa frase? “Eu compreendo até que você faça, quero te ajudar a parar de fazer isso, mas não aceito que você faça. Não significa que eu te abandone, mas significa que eu não quero que faça e estarei junto de você para que deixe de fazê-lo, porque o que faz é errado.”

Se você está fazendo algo que é certo, eu não só compreendo como aceito. Se aquilo que faz é equivocado, eu aceito você, mas não aceito o equívoco. Eu te amo, mas não aceito o que está errado. É a clássica frase que algumas religiões usam: “Não se esqueça de amar o pecador, mas rejeite o pecado”.

É como o médico bom. Ele aprecia o doente, mas não aprecia a doença. Ele gosta do doente, mas não da doença. Ele vai falar para você: “Pare de fazer isso. O seu colesterol está alto. Você está acima do peso e eu não quero que continue engordando. Eu te estimo e você vai reduzir alimento calórico, diminuir a ingestão de fritura, vai ter de andar mais. Sabe por que estou dizendo isso? Porque eu te respeito. Porque se eu não te respeitasse, seria indiferente”.

Como pais e mães, podemos dizer: “Aqui estou, quando você mudar de postura e achar que é a hora do apoio, estarei te esperando, mas não me obrigue a engolir aquilo que é errado apenas porque eu te gerei. O fato de ter te gerado me dá responsabilidade sobre você, mas essa responsabilidade não é ausente de deveres da tua parte e da minha. Um dos seus deveres e um dos meus é cuidarmos um do outro. O que você está fazendo, eu imagino, que você jamais aceitasse que eu fizesse. Não tenho dúvida de que você diria para mim: ‘Eu te amo, pai, mas não aceito isso que você está fazendo’”.

“Faça o que quiser da sua vida.” Essa frase é a do desamor, não a frase do amor. A frase é clássica e sugestiva: O mundo que nós vamos deixar para os nossos filhos depende muito dos filhos que nós deixarmos para este mundo. E daí? E eu com isso? E você com isso? Tudo. Talvez sejamos a primeira geração de adultos que esteja criando um fosso na convivência mais contínua com a geração que nos sucede. Razões? Dias corridos, competitividade, deslocamentos distantes, jornada de trabalho expandida; tudo isso e mais a pressão do sucesso, da disputa, do lugar, da vaga, da Vida.

Com isso justificamos a nossa ausência, ou vez ou outra omissão, no cotidiano dos filhos e filhas; quase não há encontro e, quando o há, pela falta de convívio intenso, despontam conflitos concentrados. Essa criança que se acorda sozinha, que às vezes faz a própria higiene sem que alguém fique ao lado, e sem ninguém que confira como ela está vestida, porque ela se troca, se veste e sai. E o café que ela toma nem sempre coincide com o horário dos adultos e ela vai. O único adulto usualmente com quem ela toma contato em casa é a pessoa que trabalha na casa dela. Para quem ela dá ordens e com quem ela mantém uma relação de autoridade ou de hierarquia.

Quando ela chega à escola, encontra um outro adulto, educador ou educadora, e esse adulto precisa dar a ela ordens. Isso produz um confronto muito forte em vários momentos. Aliás, algumas dessas crianças hoje estão chegando a um ponto – inclusive entre nós, dentro da educação – de algo que não acontecia antes: crianças de 10 anos, 12 anos, que durante uma discussão em sala de aula viram para docentes, põem o dedo no nariz da professora, por exemplo, e dizem: “Eu pago o teu salário”. Como se a nossa relação fosse mediada pelo Código do Consumidor. Como se a relação de autoridade docente (não o autoritarismo docente, a ser evitado) fosse mediada por um contrato.

É claro que isso traz distúrbios na relação no cotidiano. Imagine: essa criança que, em grande parte, não tem convívio cotidiano com os pais – esse convívio é muito remoto, quando muito, é controlado de forma eletrônica por telefone ou a relação é um pouco distante – acaba encontrando na escola um espaço onde ela tem convivência, mas onde ela tem também algumas regras, e a ebulição acontece. Não dá. A Escola sem parceria com a Família não consegue eficácia e eficiência; construir sólida base teórica, com formação de cidadania e solidariedade social exige um esforço mais fundo, forte e agregador.

Pais e mães, ou outros responsáveis adultos, quando colocam crianças e jovens nas escolas estão repartindo a tarefa educativa, mas, é sempre bom lembrar, descentralizar as ações não implica eximir-se das responsabilidades. Em outras palavras, pode-se transferir poder, jamais responsabilidade.

Por isso, vamos ter de achar tempo para partilhar as práticas educativas e formativas. Tempo? Lamento, não tenho. É? Já viu um infartado que não tem tempo, quando sobrevive? Antes de infartar, tempo algum para cuidar-se; agora, todos os dias, às 5 da manhã já sai a caminhar pela esteira ou pelas praças, de modo a postergar o fim. Quando o importante fica sufocado pelo urgente, o tempo para consertar tal distúrbio é muito maior do que o que se usaria antes de ele existir...

Mario Sergio Cortella é filósofo e escritor, com Mestrado e Doutorado em Educação, professor-titular da PUC-SP. Foi secretário municipal de Educação de São Paulo (1991-1992).

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